Numa manhã de março, a Secretaria do Estado, em fiscalização para amostragem nas correspondências da seção SEDEX 10, interceptou uma caixa registrada contendo duas serpentes jovens e comunicou o fato ao IBAMA. A equipe de fiscalização e um técnico dirigiram-se rapidamente a agência e constataram que as serpentes estavam dentro de uma sacolinha de tecido preto, dentro da caixa da ETC, configurando uma situação de maus tratos. As serpentes foram identificadas como indivíduos juvenis da família Colubridae da espécie Elaphe guttata, espécie exótica de ocorrência natural nos EUA.
O IBAMA acompanhou a entrega da correspondência e autuou um rapaz de 19 anos, aluno da Universidade Federal, estagiário em uma construtora de renome, que surpreso e assustado foi conduzido à delegacia junto a dois amigos com quem dividia o apartamento, ambos estudantes de medicida na mesma unversidade. A ação foi acompanhada pelo delegado do Meio Ambiente.
Interrogado, relatou o fato de ter emprestado seu nome e endereço ao irmão mais velho, porque o mesmo morava no interior onde não havia serviço de sedex 10. O irmão de 22 anos comprara a cobra como animal de estimação, assim como muitos de seus amigos, através do orkut. Não sabia que tinha cometido um crime. Muito menos que este crime era gravíssimo_ receber animal exótico sem parecer técnico oficial favorável e licença expedida pela autoridade competente. A comunidade corn snake, no orkut, tinha 221 membro e estava lá, há tempos, para quem quisesse acessar e participar. Era uma comunidade aberta, onde no tópico Vendas, se oferecia espécimes jovens a R$ 120,00 cada.
A venda foi feita através de e-mail e msn, que foram apresentados na delegacia, assim também foram fornecidos nome e endereço do vendedor, que dizia fazer esse comércio a mais de nove anos, sempre pelo orkut. O vendedor alegou ainda que sendo as espécies juvenis de elaphe guttata, da fauna americana, totalmente inofensivas, eram muito procuradas, sendo esta venda comum e corriqueira. O transporte das mesmas se faria via Sedex 10, acondicionadas em uma caixa, sem perigo para a vida e saúde dos animais, já que este meio de transporte é rápido e seguro, e as cobrinhas terem como característica ficar imóveis por horas a fio. E assim aconteceu. Ordem de pagamento feita, o negócio foi concluído e as cobras enviadas.
A polícia federal passou a investigar o remetente, cujo nome constava na embalagem e a ação judicial teve início.
O que os rapazes não sabiam era que a corn snake_ elaphe gutatta, nativa da América do norte, não peçonhenta, dócil e de fácil manejo, muito difundida entre os criadores de serpentes do mundo todo, era considerada espécie exótica e como tal poderia causar danos irreversíveis tais como zoonoses, em nosso ecossistema, fato gravíssimo que acarretaria várias conseqüências. Uma portaria de 1998 proibia sua importação, ainda que ela tivesse sido enviada de Bragança Paulista. Ou seja, a cobrinha era uma descendente direta da cobra importada, e, portanto poderia ser considerada importada sob certos aspectos.
Eles também sequer imaginavam que elas, as espécies juvenis de corn snake, estavam sendo maltratadas. Um atraso no sedex 10, que ao que se comenta, jamais se atrasa, poderia causar_ pasmem_ certa desidratação nas mesmas. Coisa grave, mesmo para eles, que como todos os filhos de fazendeiros cresceram vendo as cobras serem mortas a cada dia, para que não os envenenassem e aos animais da fazenda.
Enfim, inquiridos pelas autoridades, os rapazes_ o destinatário postal e o destinatário real das cobras, que através do orkut fizeram um negócio tão ingênuo quanto perigoso_ prestaram depoimentos um mês depois da ocorrência, pagando uma multa de R$ 2.200,00 por maus tratos a animais. A audiência preliminar foi agendada para o dia 27 de junho, data ansiosamente aguardada pelos familiares e que, por motivos de força maior não chegou a ocorrer_ coincidia com o jogo do Brasil na Copa. Uma nova data, 10 de novembro foi agendada. Novamente não houve audiência por falta de juiz disponível, ao que se estipulou uma outra data_ agosto de 2007, para a audiência preliminar.
Existem pontos a ponderar que, não estando implícitos deverão ser esclarecidos ao leitor:
1. Os dois espécimes jovens foram sacrificados assim que chegaram, pelos biólogos. Ou seja, desidratar não pode, matar pode. Levando-se em conta que os mesmos poderiam ser mantido vivos em cativeiro, longe das espécies nacionais para “evitar zoonoses”, por que razão foram mortos?
2. Nas fazendas da região centro-oeste espécimes variados de serpentes são mortos a cada minuto, o que nunca constituiu crime contra o meio ambiente. Ou seja, dar pauladas em cobras nas fazendas pode, acondicionar em caixinhas do ECT não pode.
3. A comunidade do orkut era visitada por centenas de pessoas todos os dias, sendo que naturalmente muitas delas adquiriram as cobrinhas como animais de estimação. Ou seja, investigar a venda criminosa das ditas cobras no orkut não pode, penalizar quem desavisadamente compra as cobras, pode.
4. Os rapazes e suas famílias estão expostos aos constrangimentos legais há nove meses e este fato se estenderá até agosto de 2007. A tensão gerada pelos inúmeros adiamentos não tem preço. Custa infinitamente mais que os R$ 2.200,00 pagos pelos maus tratos às cobras e os honorários dos advogados. Ou seja, quem pagará os maus tratos infringidos a cidadãoss inocentes, honestos, comprovadamente idôneos, pagadores de impostos, cujo terrorismo do marasmo judicial não só perturba, mas também causa danos graves no estado emocional?
Não me agrada saber que eles viajam via sedex. Mas me agrada menos saber que são “sacrificados”. Esta questão toda demonstra a maneira como somos tratados, nós, brasileiros, diante da desproporção de certas ocorrências. Crianças desidratadas morrem a cada segundo nas regiões pobres do país. Autoridades responsáveis não deveriam ser autuadas também? Cobras desidratadas constituem crime contra o meio ambiente. Crianças desnutridas e desidratadas constituem crime contra o que? Qual a multa que os maus governantes pagam por pessoas maltratadas, transportadas sem cuidados em paus-de-arara do Nordeste ou ônibus apinhados nos grandes centros? Quem responde pela gravidade do sofrimento do povo, e pelas verbas que jamais chegam às merendas escolares?
Se o IBAMA, este instituto tão louvável, um dos poucos órgãos realmente confiáveis no país, é tão eficiente como sabemos ser, por que não estender a ele a defesa dos seres humanos. Acaso não podemos ser considerados fauna? O ser humano não faz parte do meio ambiente? Ahhh… se assim fosse teríamos a nos proteger uma legislação que seria cumprida a risca. E não haveriam mais crianças desnutridas, desidratas ou maltratadas. E o transporte dos trabalhadores seria feito em confortáveis veículos seguros e ventilados. E os governantes seriam autuados, multados, punidos com todo o rigor que a lei exige.
Enquanto isto, crianças morrem de fome impunemente. E cobrinhas corn snake não podem se desidratar. Não faço apologia de maus tratos aos animais. Na verdade sou apaixonada por eles.
Nádia Daher